domingo, 22 de março de 2015

Uma limonada de justiça

fiscal e social                      


Saul Leblon              

Nestes tempos de crise, a receita do sacrifício que o Brasil deveria seguir em seu ajuste fiscal é: quem pode mais, paga mais. Quem se opõe?

 Saul Leblon
José Cruz / Agência Brasil
O governo desembarcou na praia do ajuste fiscal, queimou as caravelas e quase se imolou junto.
 
Um desastre de vento em popa definiu o caminho até aqui e isso quem diz não é a oposição, mas a angústia dentro do próprio campo progressista.
 
Foi atabalhoada a escolha do timoneiro, abrupta a ordenação da rota, não se discutiu o percurso com a tripulação, sequer se ouviu o contingente dos marujos mais próximos.
 
Colheu-se de volta um convés conflagrado, de um lado, prostrado do outro, e rombos no casco.
 
A embarcação fez água e adernou.
 
Piratas e saqueadores de faca na boca irromperam a bordo, não para afundá-la, mas sangrar seus ocupantes.
 
O naufrágio só não se consumou por muito pouco para que se possa falar em chão firme.
 
A busca de um porto seguro continua em terra numa luta de vida ou morte
 
Nesse ponto a realidade dispensa a metáfora.
 
Os fatos se impõem na forma de uma disjuntiva suficientemente imperativa na sua transparência.
 
O governo Dilma precisa fazer ajustes no ajuste fiscal .
 
Visto inicialmente como uma boia na transição de ciclo econômico, ele se revelou um pé de chumbo que empurra para o fundo num abraço mortal.
 
O risco do afogamento não é exclusivo do governo.
 
A longa viagem progressista iniciada nas grandes greves operárias dos anos 70/80 no ABC paulista, de cujo impulso se nutriu todo o ciclo de avanços democráticos e sociais das últimas décadas, poderá naufragar junto.
 
O custo econômico, humano, ideológico e geopolítico seria devastador.
 
Não para um grupo, não para um partido. Não para um governante.
 
Para um tempo histórico.
 
Para tudo o que ele representa e pode significar para a população brasileira, para a realidade e a simbologia da luta pelo desenvolvimento progressista na América Latina e no mundo.
 
O governo Dilma não é um enclave; não começa nem termina em si mesmo.
 
Seus atos tem consequências históricas.
 
Devem guardar coerência com as raízes que o sustentam.
 
Coube-lhe o ingrato desafio de abrir caminho para um novo estirão em meio a constrangimentos de abrangência quase ciclópica, que sobrepõem desafios locais e globais, encruzilhadas políticas e econômicas, interesses e conflitos que deslocam massas de forças descomunais.
 
A rota para o mar revolto de 2015 foi traçada em regime de emergência algo desesperada diante desse arrastão de tempos.
 
O novo não tem forças para se impor, o velho já não responde mais.
 
Ajustar as contas públicas nessa transição foi a âncora escolhida para resistir a vagalhões que lambem todo o convés do país, açoitando-o com ventos em litígio que dificultam sobremaneira o rumo das velas e a coerência do leme.
 
A resistência brasileira a um colapso global cuja convalescença se arrasta por seis anos atingiu um ponto de saturação.
 
O governo, no dizer da Presidente Dilma, amorteceu dentro das contas públicas todos os choques e rupturas da desordem mundial criada pelo neoliberalismo e arremetidos contra o país, a sua economia e a sociedade.
 
Atenuou-se o impacto com o fomento ao emprego e à demanda; blindou-se a luta pelo desenvolvimento com desonerações ao setor produtivo; impulsionou-se o investimento público e privado.
 
Cerca de meio trilhão de reais foram investidos nessa trincheira feita de renúncia fiscal, programas sociais, políticas de crescimento.
 
A desordem mundial, porém, persistiu para além da capacidade de resistência fiscal do Estado brasileiro. Distorções se acumularam, sendo a pior delas a valorização do real que barateou importações, devastou a manufatura, inibiu o investimento industrial e encolheu o emprego de qualidade na área manufatureira.
 
A reordenação de um ciclo crescimento nunca é indolor na vida de uma nação.
 
Mas a encruzilhada vivida agora reflete uma mudança qualitativa  em relação a tudo o que o país viveu nos últimos doze anos.
 
Não envolve apenas ajustes para voltar ao que era antes, como insinua o convite ao conformismo.
 
De agora em diante será estruturalmente mais complexo, inevitavelmente mais conflitivo, governar em favor da maioria e da justiça social.
 
A crise global é e será por muitos anos o novo normal.
 
Motor da economia global, a China não crescerá mais os dois dígitos, em média, observados nas últimas três décadas.
 
A Europa se automutila para ser o museu em carne viva da destruição do Estado do Bem-Estar Social.
 
A recuperação observada nos EUA é real, mas distinta de todas as outras: o salário real da classe média não cresce há 15 anos.
 
O trem serpenteia fora dos trilhos, desprovido de mecanismos de coordenação que possam corrigir e antecipar o seu rumo.
 
Não por acaso assiste-se à mais lenta, incerta e anêmica recuperação de todas as grandes crises capitalistas do século XX, que instaura dois balizadores políticos na agenda brasileira
 
O primeiro escancara o desastre histórico produzido pela lógica da desregulação econômica e financeira que aqui se vende como redenção da lavoura.
 
O segundo evidencia o quão distantes  se encontram as margens de segurança do grande rebojo global, que agrava a disputa pelo passo seguinte do desenvolvimento brasileiro
 
O conjunto se entrelaça para colocar o governo sob a mira de uma incontornável prova de fogo.
 
Se é certo que queimou as caravelas na praia do ajuste fiscal, não é menos certo que a sua sobrevivência, e a de tudo o que ele simboliza, impõe um ajuste dentro do ajuste, para distinguir-se da cepa ortodoxa e antissocial.
 
Não se trata de submeter o arrocho ao retoque de um photoshop.
 
Trata-se de um imperativo que distingue o suicídio, da coerência histórica: o porão não pode pagar mais que o privilégio secular.  
 
Em defesa do bem comum é hora de uma limonada feita com o limão das circunstâncias azedas e das contingências ácidas.  
 
O arrocho sofrerá uma mutação progressista se a receita do sacrifício derivar de uma ponderação corajosa.
 
Metabolismos vulneráveis não podem pagar mais que a riqueza historicamente poupada das contrapartidas aos fundos públicos (leia o especial de Carta Maior ‘Justiça Tributária: as mandíbulas que mastigam a Nação’)
 
Como? Alíquotas progressivas em escala que atinjam as grandes fortunas.
 
Mas também o imposto progressivo sobre a banca.
 
O fim da isenção fiscal aos dividendos percebidos pela pátria dos acionistas.
 
A revogação da isenção concedida por FHC às remessas de lucros do capital estrangeiro.
 
O retorno da CPMF para exclusiva destinação à saúde.
 
Um imposto sobre herança que se agregue ao pre-sal para dar à infância brasileira um mesmo ponto de partida pela educação republicana de qualidade.
 
O governo não fará uma baldeação para uma política econômica expansiva enquanto o país for refém dos rentistas e do capital especulativo na contabilidade interna e externa.
 
O ajuste fiscal, porém, não propiciará – como se espera que Brasília já tenha percebido --  um apoio conservador, nem mesmo da parte dos rentistas cevados no juro mais alta do mundo.
 
‘Insuficiente’  é o veredito invariável do colunismo econômico diante dos escalpos que o ministro Joaquim Levy acumula em sua mesa.
 
‘Arrocho de 1,2% do PIB é muito pouco’.
 
Quem resume o bordão é Armínio Fraga, o presidente de fato de um Brasil que tivesse dado a vitória a Aécio em 26 de outubro.
 
Detentor de uma conta de US$ 4,5 milhões no HSBC da Suíça, o economista banqueiro recomenda sangrar a nação com um arrocho de 3% do PIB para dar efetividade ao ajuste.  
 
Hienas farejam sangue fresco.
 
Não costumam recuar diante de quem se comporta como cadáver político.
 
A inteligência política que existe fora da Fazenda não se ilude.
 
A matilha conservadora não regressará aos trilhos de um endosso, mesmo que contido, à quarta gestão do PT à frente do país.
 
Mas também está convicta de que não há opção crível fora de uma reordenação que evite a perda da nota do Brasil junto às agências de risco.
 
Aquilo que hoje se busca de forma mais ou menos organizada, ocorreria pela asfixia externa, com redução do fluxo de capitais --indispensável ao equilíbrio das contas externas--  caso a nota de risco brasileira viesse a ser rebaixada.
 
Tanger o Brasil a esse sumidouro ‘especulativo’, no olho do furacão dos capitais voláteis, é o projeto eleitoral do conservadorismo até 2018.
 
‘Eu não quero o impeachment, eu quero sangrar a Dilma’.
 
Com a elegância que o caracteriza, e a seus seguidores de rua, assim resume a obra, o senador Aloysio Nunes Ferreira do PSDB de São Paulo.
 
Paralisar a economia e o investimento –colapsando a Petrobras e o PAC-- e empurrar o governo para fazer o ‘serviço sujo do arrocho’ é a diretriz estratégica por trás da sofreguidão do amigo de Paulo Preto.
 
O conservadorismo não se conforma –seus colunistas, isentos, emitem isso diuturnamente-- que o Brasil tenha resistido por seis anos em abrir as alfândegas ao arrocho neoliberal.
 
Isso lhes tirou a volta ao poder em 2010 e, por muito pouco, também em 2014.
 
Perdigotos e aloysios entremeados do vocabulário elevado que devolveu as ruas ao espírito cívico de quem se considera elite, e daqueles nem tanto, mas adestrados nos mesmos valores pela mídia, sugerem que o terceiro turno atravessou o Rubicão do tudo ou nada.
 
Fazer desse limão uma limonada de justiça fiscal inclui um timming superior ao prazo que o governo considera adequado à urgência econômica e à ebulição golpista.
 
É crucial, porém, explicitar didaticamente a determinação presidencial de fazê-lo –ainda que, provisoriamente, medidas indigestas tenham que ser acionadas.
 
Uma frase deve marcar o discernimento popular enquanto se luta pelo ajuste dentro do ajuste:
 
‘Quem pode mais pagará mais’.
 
A identidade política de quem sabota essa lógica deve ser escancarada à população.
 
O ônus de reter nas costas da família assalariada um aperto que poderia ser melhor amortecido nas gordas dobras do metabolismo rico tem origem secular.
 
E ela deve ser explicitada na narrativa presidencial em uma fala constante à sociedade.
 
Trata-se de dividir, não o país.
 
Quem o divide é a desigualdade.
 
Mas, sim, o custo da atual transição, de uma forma mais justa e ponderada entre o tostão e o milhão.
 
Sobretudo, porém, o governo precisa estar convencido para que possa convencer.
 
Convencido de que não se melhora a economia fora da sociedade.
 
Um ajuste que piora a desigualdade, tornando-a mais iníqua, elide as consequências e as responsabilidades adicionais da interação entre democracia e mercados no Brasil.
 
A rigor existiram apenas cinco sociedades predominantemente escravagistas na história –ou seja, alicerçadas no emprego do trabalho escravo em grande escala no campo e na cidade.
 
Segundo o historiador M.I. Finley (‘Escravidão antiga e ideologia moderna’; Graal, 1991), foram elas: Atenas clássica; Itália romana. Índias Ocidentais (sob domínio britânico); sul dos EUA e o Brasil por inteiro, onde se concentrou a maior população escrava do ocidente e cuja economia foi a última a abolir esse regime de exploração da mão de obra.
 
A nostalgia desse passado ecoa das caçarolas que evocam o espírito da casa grande nas varandas gourmet nos dias que correm.
 
O ajuste fiscal de um governo que se elegeu para dilatar as fronteiras da justiça e da democracia não pode se pautar pelos dobrados do diapasão senhoril.
 
Sobretudo, não pode –a exemplo do que proclama o ministro Joaquim Levy--  render-se à falácia neoliberal, que atribui aos mercados desregulados a âncora da cidadania e da democracia.
 
Na realidade é o oposto.  
 
A democracia funcional para os mercados é a que abriga uma abstração de direitos, a ponto de a urna ou a farda figurarem indiferentes à maioria da sociedade.
 
O conservadorismo brasileiro até convive com o sufrágio universal restrito.
 
Mas não tolera a ideia de um governo que interfira na apropriação do excedente econômico, de tal modo que os que podem mais paguem mais em benefício do bem comum.
 
Foi para isso que o governo Dilma foi eleito.
 
Para fazer uma limonada com o ajuste fiscal, que estique a viga dos direitos sociais na construção de uma verdadeira democracia no Brasil.  


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