quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O poder neoliberal
de destruição

Independentemente de seu resultado, o plebiscito escocês foi um capítulo do descontentamento social contra o 'thatcherismo'
Vladimir Safatle            
                    
     
                      
Thatcher
Desde o governo da finada Margaret Thatcher, o Reino Unido foi um verdadeiro laboratório de políticas neoliberais(Foto: Pietro Garrone/Flickr)

 Independentemente do resultado final do referendo  da Escócia,cuja maioria, em votação acirrada, garantiu a vitória do 'não' à separação da tutela de Londres, há algumas questões que merecem ser objeto de reflexão.
Desde o governo da finada Margaret Thatcher, o Reino Unido foi um verdadeiro laboratório de políticas neoliberais. Todo o receituário de flexibilização das leis trabalhistas, privatização de serviços públicos, desmantelamento da capacidade de intervenção econômica do Estado e financeirização da economia foi aplicado de maneira sistemática por conservadores e por trabalhistas. Foi no Reino Unido que o fim da social-democracia e a indistinção cada vez maior das possibilidades de escolha eleitoral internas à democracia representativa realmente começaram.
Nos anos 90, vimos como Tony Blair saiu pelo mundo a pregar as virtudes da Terceira Via, que até hoje nos assombra em períodos de eleição presidencial, para, ao final, terminar como fiel escudeiro de seu amigo George W. Bush em seus delírios belicistas. Vimos a desindustrialização caminhar a passos largos, com mineiros a amargar desempregos de longa duração, enquanto sindicatos tornavam-se cada vez mais inexpressivos. Por fim, veio a privatização do sistema universitário britânico, com suas mensalidades proibitivas, assim como as revoltas populares, como a que queimou a periferia de Londres há alguns anos.
Enquanto isso ocorria, abria-se cada vez mais um fosso político entre a Inglaterra e a Escócia. Com uma economia profundamente afetada pelas políticas thatcheristas e ciosos de sua estrutura de defesa social contra a pobreza, os escoceses pareciam morar em outro planeta. Tanto era assim que, praticamente, não haviam deputados conservadores vindos da Escócia. A quase totalidade era ligada ao Partido Trabalhista. Empobrecida pelos delírios de Thatcher, Blair e seus asseclas, a Escócia um dia acordou rica, graças à descoberta de petróleo no Mar do Norte. O desejo de separação parecia inexorável.
Nesse sentido, o referendo da quinta 18 não deve ser visto como um simples delírio nacionalista resultante de uma época de recrudescência das diferenças identitárias. O movimento independentista escocês não é feito do mesmo material que encontramos, por exemplo, em Flandres ou no norte da Itália. Nem todos esses movimentos têm a mesma coloração política e é importante saber diferenciá-los. Lembremos, por exemplo, como os escoceses propõem uma integração à Europa, embora o euroceticismo na Escócia seja praticamente inexistente, e até um aumento das taxas de imigração.
De fato, há de se lembrar que a configuração dos Estados Nacionais não é a configuração final da experiência social. Uma configuração pós-nacional pode passar pela dissolução de vínculos resultantes de exploração histórica, como aquelas que fundaram tanto o Estado espanhol quanto o Reino Unido.
Embora seja inegável a força social resultante da revolta contra a experiência de um povo colonizado por mais de 300 anos, que aproxima, por exemplo, escoceses e catalães, o referendo é resultado da capacidade de destruição produzida por políticas neoliberais.
Se a separação da Escócia fosse confirmada, teria sido a política neoliberal, aceita tanto por conservadores quanto por trabalhistas e liberais democratas, responsável pela homeopática destruição do Reino Unido. Sim, essa mesma política, até hoje elogiada como a prova dos noves da eficiência e da reconstrução racional de uma sociedade livre das “amarras estatais” e da solidariedade social, produziu, na verdade, o fim de um país, ou ao menos a consciência de uma fratura profunda a atravessá-lo.
Mesmo sem os escoceses  conquistarem sua autonomia final em relação à Inglaterra, fica claro quão destrutivas são tais receitas econômicas para a coesão social e para a existência concreta de um país. O plebiscito escocês, independentemente de seu resultado, é um capítulo da história mundial do profundo descontentamento social contra um modelo de vida desejado por poucos, mas que procuram nos vender como intransponível. O que fazem os escoceses é dizer: sendo assim, deixe-nos construir outro país, pois os sonhos neoliberais produzem monstros.  

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