sexta-feira, 27 de junho de 2014

Rose Marie Muraro: a saga de uma mulher impossível      

      Destaco apenas uma frase dela: educar um      homem é educar um indivíduo, mas educar      uma mulher é educar uma sociedade.

Leonardo Boff (*)   

Foi ela que no final dos anos 60 do século passado, suscitou a polêmica questão de gênero. Não se limitou à questão das relações desiguais de poder entre homens e mulheres mas denunciou relações de opressão na cultura, nas ciências, nas correntes filosóficas, nas instituições, no Estado e no  sistema econômico. Enfim deu-se conta de que no patriarcado de séculos reside a raíz principal deste sistema que desumaniza  mulheres e também  homens.

Realizou em si mesma um impressionante processo de libertação, narrado no livro Os seis meses em que fui homem (1990,6ª edição). Mas a obra quiçá mais importante de Rose Marie Muraro tenha sido Sexualidade da Mulher Brasileira: corpo e classe social no Brasil(1996). Trata-se de uma pesquisa de campo em vários Estados da federação, analisando como  é vivenciada a sexualidade, tomando em conta a situação de classe das mulheres, coisa ausente nos pais fundadores do discurso psicanalítico. Neste campo Rose inovou, criando uma grelha teórica que nos faz entender a  vivência da sexualidade e do corpo consoante as classes sociais. Que tipo de processo de  individuação pode realizar uma mulher famélica que para não deixar o filhinho morrer, dá o sangue de seu próprio  seio?
Trabalhei com Rose por 17 anos, ambos editores da Editora Vozes: ela responsável pela parte científica e eu pela religiosa. Mesmo sob severo controle dos órgãos de repressão millitar, Rose tinha a coragem de publicar os então autores malditos como Darcy Ribeiro, Fernando Henrique Cardoso, Paulo Freire,  cadernos do CEBRAP e outros. Depois de anos de longa discussão e estudo em conjunto reunimos nossas convergências num livro que considero seminal, Feminino   & Masculino: uma nova consciência para o encontro das diferenças (Record 2010).
Destaco apenas uma frase dela: "educar um homem é educar um indivíduo, mas educar uma mulher é educar uma sociedade".

Sem deixar nunca de lado a questão do feminino (no homem e na mulher) voltou-se cedo aos desafios da ciência e da técnica moderna. Já em 1969 lançava Autonomação e o futuro do homem e previa a precarização do mundo do trabalho.  

A crise econômico-financeira de 2008 levou-a colocar a questão do capital/dinheiro com o livro Reinventando o  capital/dinheiro (Idéias e Letras 2012), onde enfatiza a relevância das moedas sociais e complementares e as redes de trocas solidárias que permitem aos mais pobres garantirem sua subsistência à revelia da economia capitalista dominante.

Outra obra importante, realmente rica em conhecimentos, dados e reflexões culturais se  intitula Os avanços tecnológicos e o futuro da humanidade: querendo ser Deus? (Vozes 2009). Neste texto ela se confronta com a ponta da ciência, com  a nanotecnologia, a robótica, a engenharia genética e a biologia sintética. Vê vantagens nessas frentes, pois não é obscurantista. Mas pelo fato de vivermos dentro de uma sociedade que de tudo faz mercadoria, inclusive a vida, percebia o grave  risco de os cientistas presumirem poderes divinos e usarem os conhecimentos para redesenharem a espécie humana. Daí o sub-título: Querendo ser Deus?  Essa é a  ingênua ilusão dos cientistas.
O que nos salvará não é essa nova Revolução Tecnológica mas, como diz Rose, é a “Revolução da Sustentabilidade, a única que poderá salvar a espécie humana da destruição…pois a continuarmos como está, não estaremos em um jogo ganha-perde e sim no terrrivel jogo perde-perde que significará a destruição de nossa espécie, na qual todos perderemos” (Reinventando o Capital/dinheiro, 238).

Rose possuía um sentimento do mundo agudíssimo: sofria com os dramas globais e celebrava  os poucos avanços. Nos últimos tempos Rose via nuvens sombrias sobre todo o planeta, pondo em risco o nosso futuro. Morreu preocupada com as buscas de alternativas salvadoras. Mulher de profunda fé e espiritualidade, sonhava com as capacidades humanas de transformar a tragédia anunciada numa crise purificadora rumo a uma sociedade que se reconcilie com a natureza e a Mãe Terra. Conclui seu livro 'Os avanços tecnológicos' com esta sábia frase: "quando desistirmos de ser deuses poderemos ser plenamente humanos, o que ainda não sabemos o que  é, mas que intuímos desde sempre"(p. 354).

(*) Leonard Boff é renomado teólogo, escritor e professor universitário.

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