sexta-feira, 20 de junho de 2014

Cinco derrotas e um lance decisivo

Da ampliação da democracia depende a sorte das famílias assalariadas, a repartição da renda e a cota de sacrifícios em um novo ciclo de crescimento.

Saul Leblon                                                  

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Muitas vezes,  a janela  mais panorâmica de uma época não se  materializa no indispensável esforço conceitual para descortinar  a sua essência,  mas em um evento simbólico catalisador.

O passo seguinte da história brasileira carece  ainda dessa síntese que contenha as linhas de passagem para um novo ciclo de desenvolvimento.

A  simplificação analítica,  o simplismo  ideológico  são incompatíveis com essa sinapse entre o velho e o novo, projetando-se mais por aquilo que dissipam do que pelo que agregam.

Nenhum polo do espectro político está imune a essas armadilhas. Mas até pela supremacia do seu poder emissor é o conservadorismo que tem liderado o atropelo da tentativa e erro nesse embate.

Durante meses,  por exemplo, o imperativo ‘não vai ter Copa’ –e tudo aquilo que ele encerra de denuncismo derrotista--  reinou soberano  na mídia como uma metáfora esperta  do ‘não vai ter Dilma’.    

Quando os fatos desmentiram a pretensa equiparação do Brasil a um Titanic  -- a Copa ,independente da seleção, é um sucesso de público, de infraestrutura e de qualidade esportiva --   partiu-se para algo mais  explícito.

O camarote vip do Itaú  –o banco central do conservadorismo – entrou em cena para mostrar os sentimentos profundos da elite em  relação ao país. 

Repercutiu,  mas não pegou.

Embora o martelete midiático tenha disseminado a bandeira do antipetismo bélico, a ponto de hoje contagiar setores populares, como admite  -- e  sobretudo adverte --   o ministro Gilberto Carvalho,   o fato é que esse trunfo conservador  não reúne a energia necessária para  inaugurar  uma nova época.

A grosseria dos finos  exala, antes,  seu despreparo  para as tarefas do futuro.

Não quaisquer tarefas.

O país se depara com uma  transição de ciclo econômico marcada por uma correlação de forças  instável,  desprovida de aderência institucional , ademais de submetida à determinação de um  capitalismo global  avesso a  outro ordenamento  que não  o vale tudo dos mercados. 

Um desaforo tosco é o que de mais eloquente as ‘classes altas’ tem a dizer sobre a sua capacitação para lidar com esse supermercado de encruzilhadas históricas.

Não é o único senão.

Nas últimas horas ruiu também a simbologia conservadora da retidão heroica e antipetista,  atribuída  à figura de Joaquim Barbosa.

Na última 3ª feira, o presidente do STF  jogou a toalha respingada de ressentimentos, ao abandonar  a execução da AP 470.

Não sem antes  grunhir, em alemão, o menosprezo pelas questões mais gerais da construção da cidadania no país.

‘Es ist mir ganz egal' , sentenciou sobre as cotas reclamadas por negros e índios no Judiciário.

'Para mim é indiferente; não estou nem aí’.

Esse, o herói dos savonarolas de biografia inflamável.

Seria apenas o epitáfio de um bonapartismo  destemperado, não fosse, sobretudo,  a versão germânica da  indiferença social.

A mesma  inscrita no jogral dos  que se avocam à parte e acima daquilo que distingue uma nação de um ajuntamento humano: a pactuação democrática de valores e projetos que selam um destino  compartilhado. 

O particularismo black bloc enfrenta agora seu novo revés no terreno da inflação. 
Seja pela eficácia destrutiva da maior taxa de juro do planeta (em termos nominais o juro  brasileiro só perde para o da Nigéria), seja pelo espraiamento das anomalias climáticas  no mercado de alimentos, o fato é que os principais índices de inflação desabam.

E com eles a bandeira ‘popular’ de Aécio e assemelhados.

Mas há uma variável ainda mais adversa ao conservadorismo no plano  da economia política.

O fato de o país viver um quadro de pleno emprego dá ao campo progressista  um trunfo inestimável na negociação de um novo ciclo de crescimento.

Uma coisa é negociar com trabalhadores espremidos em filas de desempregados vendendo-se a qualquer preço. Outra, fazê-lo  em um mercado em que a demanda por mão-de-obra cresceu mais que a população economicamente ativa nos últimos anos.

O conjunto fragiliza um  certo fatalismo com devotos dos dois lados da polaridade política,   que encara as eleições como uma formalidade incapaz de alterar  o  calendário do arrocho, com o qual o país teria um encontro marcado  após as eleições.

Tudo se passa, desse ponto de vista, como se houvesse uma concertación não escrita  à moda chilena que tornaria irrelevante o titular da Presidência, diante dos  limites  impostos  pela subordinação do Estado  aos  imperativos dos mercados local e global.

É essa, um pouco,   a aposta  da candidatura Campos, que se oferece à praça e à  banca como a cola ambivalente  capaz de dissolver os  dois lados da disputa em um tertius eficiente e confiável.

O fato de ter fracassado até agora  não implica o êxito efetivo  do campo progressista em se libertar  da  indiferenciação   que  rebaixa o papel da democracia na definição do futuro.

Os desafios desse percurso  não podem ser subestimados.

De modo muito grosseiro, trata-se de modular um estirão  de ganhos de produtividade (daí a importância  de se fortalecer seu principal núcleo irradiador, a indústria, ademais da infraestrutura e da educação)  que financie  novos degraus de acesso  à cidadania plena.

A força e o consentimento necessários para conduzir  esse  ciclo --em uma chave que não seja a do arrocho--  requisitam um salto de discernimento e organização social  que assegure   o mais amplo debate sobre metas, prazos, compromissos, concessões, conquistas  e  salvaguardas.

Não se trata, portanto,  apenas de sobreviver  à convalescência do modelo neoliberal.

O que está em jogo é erguer  linhas de passagem para um futuro alternativo  à lógica do cada um por si, derivada  de determinações históricas devastadoras  que se irradiam da supremacia global das finanças desreguladas, para todas as dimensões da vida, da economia e da sociabilidade em nosso tempo.

A dificuldade de se iniciar esse salto  advém, em primeiro lugar, da inexistência de um espaço democrático de debate  em que os interesses da sociedade  deixem de figurar apenas como um acorde dissonante no monólogo da restauração neoliberal.

Cada um por si, e os mercados por cima de todos,  ou a árdua construção de um democracia social negociada?

É em torno dessa disjuntiva que se abre a  janela mais panorâmica da encruzilhada brasileira nos dias que correm.

Da ampliação da democracia participativa depende o futuro dos direitos trabalhistas, a sorte das famílias assalariadas, a repartição da renda e a cota de sacrifícios entre as classes sociais na definição de um novo ciclo de crescimento.

É essa moldura histórica que magnifica a importância da Política Nacional de Participação Social anunciada agora pelo governo.

Para que contemple as grandes escolhas  do nosso tempo, porém, é  crucial que o governo não se satisfaça em  tê-la apenas como um aceno de participação ou um ornamento  da democracia.

Os desafios são imensos. Maior, porém, é a responsabilidade do discernimento  que sabe onde estão as respostas e tem  o dever de validá-las. 

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