segunda-feira, 31 de março de 2014

Vaticano

Reformador. Ou revolucionário?

O Papa completa o primeiro ano do seu pontificado e exibe, antes de mais nada, uma estatura de estadista. 
Claudio Bernabucci           Carta Capital
                                                                                                                                                                      Osservatore Romano
Este conselho funciona como o gabinete de um presidente que toma as decisões finais em perfeita solidão
O papa Francisco celebrou seu primeiro aniversário de pontificado no dia 13 de março, não no Vaticano, mas no convento do Divino Maestro, em Ariccia, pequena localidade nos arredores de Roma. Ainda uma vez surpreendeu: nenhuma celebração ostensiva aos olhos do mundo, mas uma semana de exercícios espirituais da Quaresma, acompanhado pelos principais representantes da Cúria vaticana. Também nos detalhes da iniciativa deixou sua marca: viagem de ônibus, em meio à comitiva, sem ajudantes ou secretários no séquito. Como todos os outros, pagará sua conta ao convento.
O mesmo aconteceu na Casa do Clero, residência eclesiástica em pleno centro de Roma, onde ele morou por alguns dias antes do Conclave, no ano passado. Imediatamente depois da eleição, apresentou-se no caixa e pagou regularmente sua conta, contrariando quantos o lembravam de que ele se tornara dono do lugar. “Há que se dar o bom exemplo”, respondeu Francisco. Em seguida, evitou transferir-se para os suntuosos apartamentos pontifícios, no quinto andar do Palácio Apostólico, com janelas para a Praça São Pedro. Quando o visitou, nos dias seguintes, comentou que ali poderiam morar 300 pessoas e que ele, sozinho, se sentiria isolado. Bergoglio sempre gostou da vida em comunidade, mas, nesse caso, temia também o assédio da Cúria e seus rituais aprisionantes. Daí a decisão de ficar em uma modesta suíte de dois quartos (a 201) no albergue de Santa Marta, no interior do Vaticano, lado a lado de peregrinos e outros visitantes.
Com tal opção pela humildade, o novo papa, coerente com suas origens, caracterizou seu primeiro ano de pontificado por uma mistura de espírito misericordioso e decisões marcadas pela firmeza. A partir da escolha do nome, Francisco, santo dos pobres, feita por ele, primeiro papa da ordem dos jesuítas, belicoso esteio da Contrarreforma. Aparente contradição que Bergoglio conseguiu conjugar de maneira criativa e profunda.
A “Companhia” foi fundada por Inácio de Loyola para combater o cisma luterano e na tentativa de contrastar a gravíssima crise provocada pelo protestantismo (século XVI).
Os jesuítas já não têm o poder dos séculos passados, quando o Superior Geral da Companhia, pela grande influência que exercia na Igreja, era chamado de Papa Negro. Não obstante, eles mantêm alto o valor da própria identidade. Francisco é íntimo da cultura e das práticas da Companhia e não é, certamente, por acaso que o primeiro pontífice jesuíta foi escolhido numa fase de extrema secularização do mundo e de grave isolamento da Igreja.
Eleito por arrasadora maioria entre os 115 cardeais do Conclave (fala-se em mais de 90 votos), Francisco sucedeu ao papa que foi obrigado a se demitir ao perceber sua fraqueza diante da degeneração do catolicismo. A Igreja que Francisco herdou do infeliz Bento XVI, primeiro papa a se demitir desde a Idade Média, estava no ponto mais baixo de sua credibilidade ética e religiosa, contaminada por escândalos financeiros e abusos sexuais, lutas de poder e sórdidas conspirações.
Só 12 meses se passaram daquele buonasera! pronunciado pelo papa chamado a assumir o mando, mas já é poderosíssima a marca de Francisco na tentativa de plasmar uma Igreja missionária, como a Companhia de Jesus tradicionalmente promoveu sobretudo além-mar. Os sacerdotes são convidados a compreender o ambiente em que operam e adaptar seus cuidados pastorais às diferentes situações. E são também encorajados a confrontar-se com culturas religiosas diferentes e a dedicar especial atenção ao diálogo com os não crentes. A transformação que o papa Francisco está desenvolvendo não prevê o abandono da doutrina ou a desmontagem da arquitetura dogmática, e sim a interpretação, em formas e modalidades novas, de seus significados, adaptando-os à realidade contemporânea.
São numerosos os casos em que tal atitude metodológica encontra aplicação, em relação a temas delicados nos quais o debate, dentro e fora da Igreja, é muito aceso. Referimo-nos a problemas como o celibato dos sacerdotes, o papel da mulher na Igreja, a família, os direitos dos homossexuais etc. Todas questões cujo status quo o papa Francisco tem firme intenção de modificar. Em recente entrevista concedida ao jornal La Repubblica, o cardeal Walter Kasper, entre os mais próximos do papa, encarregado de preparar o Sínodo do próximo outono sobre a família, afirma: “A Igreja pode encontrar novas respostas para que um divorciado e casado novamente, após um período de penitência, seja readmitido aos Sacramentos. Minha posição não é fraca, mas pretende reconhecer que, através do arrependimento, todos podem receber clemência e misericórdia. Qualquer pecado pode ser absolvido. A absolvição não é contra a moral ou contra a doutrina, mas a favor da aplicação realista da doutrina, com realismo diante da situação de fato”. E ainda: “A Igreja nunca deve julgar como se tivesse nas mãos uma guilhotina. Ao contrário, deve sempre deixar aberta a porta à misericórdia. Isso não significa mudar a doutrina que não pode ser alterada, embora a doutrina não seja uma lagoa estagnada, mas um rio que flui”.
O impressionante consenso que o papa Francisco continua acumulando no interior da Igreja e nos cinco continentes, entre homens e mulheres de qualquer estrato social ou religioso, nível econômico ou cultural, é fruto de gestos simbólicos e decisões corajosas ao longo dos últimos 12 meses. Resulta difícil listar os mais significativos. Lembramos opção de manter os velhos sapatos portenhos em vez de calçar os sapatinhos de seda vermelha previstos nas cerimônias oficiais. Ou sua ausência, em 22 de junho do ano passado, no primeiro concerto de música clássica realizado no Vaticano, em sua homenagem, ao mostrar distanciamento de um evento mundano, por um lado, mas também claro sinal de frieza com a Cúria Romana. Ou sua visita profética à ilha de Lampedusa, quando pela primeira vez denunciou a “globalização da indiferença”, poucas semanas antes da maior tragédia da imigração clandestina no Mediterrâneo. É um nunca mais acabar de gestos plenos de significados. Suas palavras duras contra o luxo e qualquer forma de ostentação, pronunciadas diante de uma plateia de noviços e seminaristas entusiasmados, em julho passado, quando estigmatizou os padres e as freiras que usam carros de último modelo. Ou quando lembrou aos recém-empossados cardeais, em fevereiro, que a Igreja não é uma corte. Ou, ao visitar os mineiros em greve, em Cagliari, na ilha da Sardenha, envergou o capacete e pronunciou palavras de fogo contra o sistema econômico que produz desemprego: “Não há esperança social sem trabalho decente para todos... Neste sistema sem ética, no centro há um ídolo, e o mundo tornou-se idólatra desse deus dinheiro. É o dinheiro que manda!”
Todos esses exemplos não teriam o impacto que exerceram na consciência universal se fossem isolados de decisões concretas e corajosas na reforma estrutural da Igreja Católica. Talvez seja prematuro e simplista considerar ganha a batalha contra conservadorismos e fundamentalismos, mas muitos comentaristas já falam de autêntica revolução. É fato que Francisco, ao agir igual ao líder político deposto a sujar as mãos na administração do poder temporal, decapitou a antiga Cúria Romana em poucos meses, substituindo as figuras mais ambíguas do governo anterior, a começar pelo secretário de Estado, o cardeal Bertone.
Atuando com métodos de governo colegiado (instituiu um Conselho de oito cardeais para assisti-lo constantemente), mas tomando decisões firmes em absoluta solidão, o papa Francisco dedicou-se à reestruturação do banco e das finanças vaticanas, a mais difícil das reformas internas. Depois de longos meses de resistências e polêmicas, incluindo a prisão de alguns réus, criou um ministério da Economia com amplos poderes, e que só responderá a ele, e chamou o cardeal australiano George Pell para chefiá-lo. Com essa decisão, acentuou também a progressiva desitalianização da Cúria vaticana, que agora aparece mais equilibrada e realmente ecumênica.
Líder não só religioso, mas nesse caso também político, Francisco, com seu exemplo, mostra aos poderosos da Terra o caminho da possível reforma virtuosa e do bom governo. Como chefe espiritual, expressa hoje as posições mais críticas e firmes contra o sistema econômico-financeiro que governa o mundo e, como líder político, se dispõe à reforma de seu sistema interno.
Depois de escrever a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, que se torna a principal referência da nova doutrina social cristã, em recente entrevista ao Corriere della Sera, ele define seu pensamento em relação a tais questões: “É verdade que a globalização já salvou muitas pessoas da pobreza, mas ao mesmo tempo condenou muitas outras a morrer de fome, porque com este sistema econômico ela se torna seletiva. A Igreja concebe uma globalização que não se pareça com uma esfera, onde cada ponto é equidistante do centro e que anula as peculiaridades dos povos, mas como um poliedro, com suas diferentes faces, em que cada povo mantém sua própria cultura, língua, religião e identidade. A atual globalização ‘esférica’, econômica e sobretudo financeira produz um pensamento único, um pensamento fraco. No centro, não há a pessoa humana, apenas o dinheiro”.
O papa que quer reformar sua Igreja e levantar as consciências do mundo em decadência moral, política e religiosa, fala as palavras de paz e ternura do santo de Assis, mas se move com os métodos e a audácia de Inácio de Loyola. É aliado de todos os homens de boa vontade, crentes e não crentes, que sonham e lutam por um mundo mais justo.
Notícias de última hora: além dos exercícios espirituais em curso, foi publicado no dia 13 de março um artigo na primeira página doLa Repubblica, assinado simplesmente 'Francisco', cujo título esclarece bem o conteúdo: “Chega de fundamentalismos e pensamento único, a verdade não existe sem diálogo”. Poucas horas mais tarde, um tuíte em account @Pontifex: “Rezem por mim”.

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