terça-feira, 18 de março de 2014

A revolução que não sai no jornal

Há uma revolução em marcha nos bastidores da sociedade venezuelana. Uma revolução pelo livro, ancorada em uma rede de editoras e livrarias públicas.

Saul Leblon                                
Divulgação
Que uma feira de livros inaugurada em Caracas, na semana passada, tenha atraído tanto ou mais  público que um protesto contra Cuba marcado  para o mesmo dia, pode soar estranho ao discernimento de quem se informa apenas pela mídia conservadora.

Mas foi exatamente  o que sucedeu na última sexta-feira, como relata o economista Pedro Silva Barros, que passa a colaborar com Carta Maior diretamente da capital venezuelana.

Seu oportuno texto de estreia (leia nesta pág.) informa não apenas que –pasmem--  existem venezuelanos mais interessados em literatura do que em rejeitar a parceria cubana nas áreas da saúde, educação etc.

O inusitado, quando se toma a emissão conservadora como norma, é mais amplo e profundo.

Pedro Silva Barros relata a existência de uma verdadeira revolução silenciosa nos bastidores da suposta conflagração  irreversível da sociedade venezuelana, sugerida pelos despachos  que o ‘jornalismo isento’ envia ao Brasil. 

Erradicado o analfabetismo em 2005, feito atestado pela Unesco e graças à estreita cooperação  entre Havana e Caracas, o governo venezuelano cuida de baratear o acesso à literatura, expandindo  uma rede de livrarias públicas e semeando  editoras pelo país.

Uma delas, informa Pedro Barros, a Editorial El Perro y la Rana, já reúne um catálogo de mais de 4.300 títulos.

A malha de  livrarias públicas  --Librerías del Sur, inclui lojas em todos os estados. A venda de  livros subsidiados em locais de grande circulação pública, como estações do metrô, tornou-se trivial.

Não há notícia de ‘dirigismo autoritário’ na política editorial. A menos que se inclua nessa pauta conservador  a distribuição gratuita de um milhão de exemplares de Don Quixote de La Mancha,  obra-prima da literatura mundial, cujo quarto centenário foi festejado assim pelo então Presidente Chávez. 

Essa revolução se entrelaça a outra, a do acesso à educação superior na Venezuela: o país tem cerca de 28 milhões de habitantes e dois milhões de universitários (o Brasil tem sete milhões para uma população de 190 milhões).

Nada disso diminui nem desmente a existência de uma polarização política  nesse momento, extremada  pela radicalização de uma parte da oposição venezuelana, e que já fez 29 vítimas fatais dos dois lados.

O que esses relatos ajudam a entender é por que um governo que teria contra si uma sociedade integralmente dilacerada, como ensina o martelete conservador,  não caiu até agora .

A dificuldade de se obter maior  transparência no noticiário relacionado aos conflitos e disputas vividos naquele país –razão do novo nome incorporado à equipe de colaboradores de Carta Maior-- fala diretamente  ao momento brasileiro. 
Não se trata de equiparar  a radicalidade , nem os desafios contidos na agenda venezuelana.

Trata-se  de chamar a atenção para o decisivo papel da informação plural  quando  do que mais se necessita é dotar a agenda do desenvolvimento de um razoável grau de coerência, que permita concentrar energias em processos e  prioridades de interesse da maioria da população.

Essa é uma das mais delicadas operações da democracia: assegurar que o embate político gere a força, a legitimidade  e o consentimento necessários à aglutinação das grandes  maiorias requeridas  às transições de ciclo histórico.

O oposto disso é o golpe. A crispação neoudenista. O comportamento  vergonhoso de uma mídia que, à falta de cardápios  defensáveis  dedica-se a denunciar supostos privilégios no do ex-ministro José Dirceu.

Escandaliza-a  a hipótese de que o ex-ministro possa, digamos, ter devorado um Big Mac na Papuda, mas não a sua retenção ilegal em regime fechado, depois do direito assegurado ao semiaberto.

Qual o passo seguinte dessa espiral da exasperação?

Aquilo que o conservadorismo brasileiro não hesitou em acionar há  50 anos.

Quando se viu na iminência de ceder espaço à hegemonia em formação  em torno das reformas de base  propostas por Jango, (como ficou documentado em pesquisas do Ibope, só recentemente divulgadas), golpeou a democracia a  propósito de defendê-la.

É impossível exagerar  a importância  da mídia no processo de desenvolvimento de uma sociedade.

De qualquer sociedade. Mas  sobretudo  daquelas que, a exemplo da Venezuela, Brasil, Argentina, entre outras,   vivem nesse momento a inflamável confluência de uma dupla travessia.

Ela inclui reformar o motor de desenvolvimento em meio  à  habitual  escassez de recursos, agravada   pela reordenação  da economia mundial .

O conjunto  estreita adicionalmente  a margem de manobra do Estado para gerir as dilacerantes contradições  do capitalismo na América Latina.

A alternativa ao golpismo é a repactuação política da agenda do desenvolvimento.

Seu  requisito básico é facultar à sociedade o acesso a dados e análises que lhe permitam assumir o comando do seu destino.

Se nem o florescimento  editorial na Venezuela é informado por aqui, o que esperar das questões mais agudas  --e as graúdas-  que  envolvem as escolhas do desenvolvimento brasileiro?
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Venezuela: Revolução pelos livros, protestos contra Cuba e o maestro Dudamel

A ocorrência de três eventos num mesmo domingo ilustra alguns dos principais impasses políticos vividos pela Venezuela nos dias de hoje.


Pedro Silva Barros                                                  
Filven 2014 - Apresentação no estande do Brasil (Foto: Pedro Silva Barros)
Foi inaugurada na última sexta (14), em Caracas, a X Feira Internacional do Livro da Venezuela (Filven). Trata-se do maior evento de difusão cultural de um país que expandiu enormemente o acesso à literatura nos últimos anos.

  No mesmo fim-de-semana que milhares de caraquenhos desfrutavam a Filven, outros tantos marchavam em direção à embaixada de Cuba contra a suposta ingerência do país na Venezuela. Em Nova Iorque, alguns venezuelanos e exilados cubanos se reuniam na antessala do Avery Fisher Hall para protestar contra a posição do jovem maestro Gustavo Dudamel favorável ao governo Maduro e ao processo político em curso na Venezuela. (Foto: BBC)

A coincidência desses três eventos diz muito sobre o que acontece na Venezuela desde que Hugo Chávez chegou ao poder.

Em 1999, primeiro ano do governo Chávez, a Venezuela se refundava por meio de uma Assembleia Constituinte e Dudamel, aos 18 anos, era indicado para ser diretor da orquestra juvenil da Venezuela. O sistema de orquestra juvenil da Venezuela não é obra chavista, mas cresceu enormemente nos últimos quinze anos, conta com mais de 100 orquestras e 300 mil jovens tocando. Completou 39 anos mês passado. Dudamel, que atualmente rege a orquestra filarmônica de Los Angeles, esteve em Caracas para a comemoração, criticou os protestos violentos e realizou um concerto pela paz na sede da chancelaria venezuelana.

O momento decisivo do chavismo foi a reversão do golpe de 2002. Quando a CNN anunciava que os venezuelanos apoiavam a queda de Chávez e as ruas de Caracas estavam tranquilas, quando os golpistas cortavam o sinal do único canal público de televisão, fechavam a assembleia nacional e destituíam a suprema corte, a população das regiões mais pobres de Caracas cercava o palácio do governo para exigir a volta do presidente eleito. Com o retorno ao poder, o presidente Chávez desenhou uma série de programas sociais, que contaram com o apoio decisivo de Cuba, particularmente nas áreas de educação e saúde.

Em 2003, foram lançadas a Missão Bairro Adentro, com milhares de profissionais da área de saúde cubanos atendendo em áreas onde os serviços médicos nunca haviam chegado, e a Missão Robinson, com o objetivo de ensinar a ler e escrever a população analfabeta da Venezuela. Os programas receberam ferozes críticas das tradicionais associações profissionais, mas sempre contaram com grande apoio popular.

Em 2005 o programa já colhia frutos: a Unesco reconheceu a Venezuela como território livre de analfabetismo. No ano em que a maior obra da literatura hispânica completava o seu quarto centenário, o governo distribuiu gratuitamente um milhão de exemplares de Don Quijote de La Mancha. Ainda foram impressos 70 mil exemplares em inglês para serem distribuídos no Caribe e mais 5 mil em francês para o Haiti. Nos valores da época, cada exemplar custou apenas US$ 1,67 ao governo bolivariano, que foram pagos a uma editora espanhola. Para fechar o ano, em novembro, foi realizada a I Feira Internacional do Livro da Venezuela.

Nos últimos dez anos foi fortalecida a educação básica e média, expandido o ensino superior, criada uma rede de editoras e livrarias públicas. Por exemplo, a Editorial El Perro y la Rana, que tem por objetivo a produção massiva de livros a baixo custo, em poucos anos já reúne um catálogo de mais de 4.300 títulos. A rede de livrarias públicas Librerías del Sur tem lojas em todos os estados do país para vender livros subsidiados em locais de grande circulação de pessoas, como estações do metrô. Os jovens que estão no sistema de orquestras, os adultos que participaram da Missão Robinson, seguiram seus estudos e se juntaram os hoje 2 milhões de estudantes universitários da Venezuela; todos agradecem.

A décima edição da Filven tem como país convidado de honra o Brasil e o tema “perspectivas e desafios da edição pública na América Latina”. Para além da região, destacam-se na Filven estandes da China, França, Espanha, Irã, Catar, Palestina e País Basco. Na sessão de abertura, o embaixador do Brasil junto à Venezuela, Ruy Pereira, anunciou que nosso país cooperará para o estabelecimento de uma política de acesso a livros em braile, seguimento ainda carente de políticas públicas, na Venezuela. Na mesma ocasião, o vice presidente do país, Jorge Arreaza, após lembrar de uma das frases mais repetidas por Hugo Chávez, “Como dizia José Martí, um povo culto é um povo livre”, convidou os participantes das manifestações que perdem força, mas perduram há um mês e estão longe de acabarem, a trocarem os “coquetéis molotoves” por livros.
 
                  

Embora esta manifestação específica dos oposicionistas contra Cuba tenha ocorrido com tranquilidade, sem registros de violência, o país segue polarizado. Na madrugada de segunda-feira (17), um capitão da guarda nacional bolivariana foi assassinado no estado de Aragua com um tiro na cabeça quando aparentemente tentava impedir a construção de uma barricada em uma avenida da capital Maracay. Tanto o estado como a capital são governados pelo chavismo e até agora não havia ocorrido atos de violência na região. Ao mesmo tempo, o mesmo corpo de segurança ocupou a praça de Altamira, principal reduto da oposição, e apreendeu bombas caseiras escondidas nos jardins (foto acima, do site La Patilla). Não surpreende, porém, que a maioria dos que foram alfabetizados pela Missão Robinson preferiram a Filven ao protesto contra Cuba.

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