quarta-feira, 26 de março de 2014

A Farsa Desfeita:       
a “revolução” de 64
foi uma quartelada 


O artigo abaixo é de autoria do escritor e jornalista Edmundo Moniz (1911 – 1997). Foi publicado no Correio da Manhã em agosto de 1964. O Correio era, então, um dos principais jornais do Brasil; e Moniz, um de seus mais destacados colunistas.                                                                                                              
                                               
Do AMgóes - Criado em  1901 pelo advogado Edmundo Bittencourt, no Rio de Janeiro, o CORREIO DA MANHÃ, como a maioria dos demais, foi um jornal que, em seus 70 anos(fechado em 1974), oscilou com virulência 'classe A' da crítica exacerbada ao poder constituído a posições editoriais entre retumbantes equívocos e acertos, até quedar-se vítima do monstro(o golpe de 1964) que alimentou nos primeiros tempos, achando tratar-se apenas de um efêmero 'mal necessário' para barrar o 'caos' supostamente instalado no país. Em suma, exerceu  um jornalismo, digamos, 'camaleônico', oscilando conjunturalmente ao sabor de suas injunções conservadoras, embora flertando cotidianamente com o pensamento liberal vigente. Em seus primeiros tempos(1904) espinafrara a campanha da vacina obrigatória,  implementada por Oswaldo Cruz no então Distrito Federal, primeiro 'mico' institucional que protagonizou, aliando-se aos segmentos obscuros da opinião pública. Avalizou a queda da 'república do café com leite em outubro de 1930 e a vitória da 'Aliança Liberal', Getúlio Vargas à frente. Embora apoiando o envio de tropas brasileiras ao teatro italiano da segunda guerra mundial contra os nazifascistas,  combateu o autoritário 'Estado Novo' implantado em 1937. Em 1954, na crise que culminou com o suicídio de Getúlio(24 de agosto), o diário dos Bittencourt advogara, com cautela, a renúncia do presidente, eleito por esmagadora maioria em 1950, diante da pressão da UDN em conluio com militares das três armas(sempre eles) e, diante da comoção nacional pelo trágico desfecho, defendeu, à guisa de 'panos quentes', o desarme dos espíritos em conflito, à memória do estadista 'sacrificado' pelas imponderáveis circunstâncias políticas. Em 1955 fez coro pela posse de JK, ameaçada em novembro daquele ano golpistas de direita, militares e civis   que acabaram subjugados pelo legalismo incondicional do bravo general Teixeira Lott, então  ministro da Guerra do presidente substituto Café Filho. Abriu suas páginas à posse de Jango, 'vice' eleito por chapa adversária e sucessor constitucional de Jânio Quadros(que renunciara após 7 meses de mandato, em 25 de agosto de 1961), mas corroborou a vitoriosa articulação golpista de 1964, justificando ser imprescindível um 'basta' ao suposto caos decorrente das ações do presidente  João Goulart pró-Reformas de Base. Os herdeiros do fundador do 'Correio' acreditavam que, após 'imporem ordem à casa', os militares estimulariam a eleição presidencial em  1965, em consonância com o calendário eleitoral, mas sobreveio, na realidade, a permanência do general Castelo Branco no planalto até 1967, cujo bastão foi passado a Costa e Silva. Com o 'fechamento' editado no AI-5, Médici foi a bola da vez, sucedido por Geisel e, fechando o caixão malcheiroso da ditadura, o cavalariano João(Figueiredo). Passando a desancar o governo discricionário instalado em Brasília, o 'Correio' passou a sobreviver a pão e água, até sucumbir por asfixia econômica e editorial, sob a violenta censura nos anos de chumbo'. O artigo abaixo, do  veterano jornalista Edmundo Moniz, publicado a menos de 5 meses de deflagrada a 'revolução redentora contra o comunismo e a corrupção', manifestou o desencanto que despedaçou a credulidade do 'Correio da Manhã', cujo presidente, Paulo Bittencourt, malgrado as recorrentes insurreições castrenses na década anterior, de que fora testemunha ocular, pelo visto ainda acreditava em Papai Noel e Saci Pererê. Cabe, todavia,  mérito ao jornal por constatar, através de um parto de consciência a fórceps, que os milicos, dando uma rasteira nos civis golpistas, quiseram mesmo se 'encastelar'  no poder 'ad secula seculorum'. Nenhum general, chegado ao mando de um Estado pelo poder das armas através dos séculos, saiu pelo voto. Aqui, o último e trêfego centurião, 'sentou praça' até o país, na onda das 'diretas-já'(que só viriam, na realidade, em 1989) e de saco cheio com tanta ordem (des)unida sob a égide do 'pra frente, Brasil...ame-o ou deixe-o', exibiu extraordinária resistência massiva nas ruas para enquadrar a  turma fardada, mandando-a em marcha batida  de volta aos quartéis, de onde, aliás,  por direito constitucional, jamais poderia ter saído para provocar, com os tanques pagos pelo contribuinte, colossal estrago - como fizeram - em nossas vidas.              O "ressurgimento da democracia" segundo o Globo
O “ressurgimento da democracia” segundo o Globo
A farsa de apresentar como 'revolução' a quartelada de abril, já se acha completamente desfeita e desmoralizada.
Não era preciso um movimento revolucionário, se fosse o caso, para combater a subversão e a corrupção. Além do mais, tanto o conceito de corrupção como o conceito de subversão não ficaram devidamente esclarecidos pelos governantes atuais.
Corruptos conhecidos, de escala internacional, orgulhosos de serem o que são, exerceram e exercem uma poderosa influência na constituição e na vida do governo.
E o que dizer dos subversivos? Tudo aquilo de que eles eram acusados de pretender executar foi posto em prática, sem a menor cerimônia, pela nova situação. Tivemos a Constituição violada, o Congresso coagido, o Poder Judiciário ameaçado, sem falar nos atentatos aos direitos políticos e à legalidade democrática e, finalmente, o adiamento das eleições de 65 com a prorrogação do mandato presidencial.
A revolução é por si mesma subversiva, como é subversivo o golpe de Estado. A diferença entre uma coisa e outra é que o golpe de Estado se limita à mudança política do governo por meio da força armada. A revolução, quer seja levada à frente pela violência ou pelo compromisso de classes, transforma a estrutura econômica e social de uma nação.
A revolução nos países subdesenvolvidos, coloniais e semicoloniais, tem um caráter específico, que é o da emancipação econômica.
O Brasil vinha operando a revolução burguesa de maneira democrática e pacífica, pelo aceleramento do desenvolvimento industrial, pela perspectiva da reforma agrária, pela possibilidade de tornar-se economicamente independente, libertando-se da tutela imperialista.
Essa revolução constituía uma experiência nova pelo aspecto que tomou em contraste com as diversas tentativas de emancipação nacional por meio de convulsões internas.
Chegou a ser uma convicção profundamente arraigada em todos os setores de que não haveria mais clima, no Brasil, país pré-desenvolvido, para um golpe militar que criasseum estado de exceção, com a violação da ordem constitucional e democrática.
Recordava-se para o fortalecimento dessa tese, que a independência política, a Abolição e a República se fizeram sem derramamento de sangue e que o mesmo aconteceria com o complemento da revolução nacional por meio das reformas, que eram exigidas organicamente pelas próprias necessidades do desenvolvimento das forças produtivas.
Mas que vemos? A interrupção do processo democrático, com o estabelecimento de uma ditadura disfarçada. E quais as consequências dessa ditadura? O país estagnado e sem saída imediata. As medidas tomadas, até agora, no campo econômico e financeiro, cerraram as portas até mesmo para as soluções de emergência.
Onde estão os elementos da corrupção e da subversão? Os que eram acusados por uma ou outra coisa e responsáveis pela anarquia administrativa encontram-se fora do poder. Mas a situação nacional piora de momento para momento, de dia para dia, de mês para mês.
O preço dos bens de consumo essenciais ao povo sobe de maneira vertiginosa. Não é possível o congelamento de salário, como se tem feito, porque não é possível deter a carestia que se tornou incontrolável. Para combate a crise econômica, que tende a se agravar, o governo fala em aumentar os impostos, restringir o crédito e reduzir as despesas orçamentárias.
Mas a inflação continua de maneira avassaladora, a produção diminui e surge o desemprego.
O governo só agiu com rapidez e eficiência na modificação da lei de remessa de lucros, que vinha não em interesse da economia nacional e sim em benefício do capital estrangeiro.
Deu o Brasil algum passo à frente, depois do movimento de abril, para a sua libertação nacional?
Aí estão os fatos para comprovar a realidade econômica e política. Só se verifica o recuo, o retrocesso. Nenhuma medida foi tomada seriamente para a efetivação das reformas e melhoria do país e do povo.
A chamada revolução não fez outra coisa senão deter a revolução brasileira.
Evidentemente, nada se poderá fazer numa nação atemorizada. A democracia não é apenas uma conquista moral que garante os direitos do homem, necessários à própria dignidade de viver. A democracia é também uma conquista histórica da natureza objetiva no campo político e social.
Não é possível realizar nenhuma reforma, no Brasil, o livre debate, sem a plena liberdade de pensamento. Nada se fará de positivo, desde que haja constrangimento, coação e temor.
E por que o Ato Institucional? Por que a supressão das liberdades públicas? Por que a cassação dos direitos políticos? Por que a suspensão das garantias constitucionais?
O que se verifica, atualmente, é uma liberdade consentida, mas não a plena liberdade assegurada pela Constituição de 1946.
Não resta dúvida: se as reformas forem levadas ao Congresso e aprovadas, neste ambiente de terror, correrão o risco de não passar de letra morta. O essencial não é a votação de uma lei e sim a transformação da estrutura social para dar ao país a sua emancipação econômica.
O processo de desenvolvimento econômico como o da democratização política foram interrompidas no País com o movimento de abril. Mas não se muda a mentalidade de um povo com medidas administrativas ou a instauração do terror policial e militar. Não se altera uma realidade histórica por meio da força que episodicamente se faz sentir e se impõe.
A história foi sempre assim: dois passados para a frente e um passo para trás. De outra forma, a humanidade não teria chegado ao que chegou presentemente.
O eclipse da democracia brasileira não quer dizer o seu crepúsculo. A redemocratização do país se imporá como a necessidade primordial, inerente à sua própria sobrevivência.
O povo sabe o que representa a liberdade. E nunca a liberdade é tão querida e tão desejada como na hora em que se encontra em perigo.
A vida política do país está em ameaçada pelos civis e militares da direita, que continuam a conspirar para impedir que o Brasil possa reencontrar o caminho de sua verdadeira revolução.

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