terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Metida a esperta, a elite é burra

                                                                     
Do AMGóes (*) - Lembro-me de que, nos anos 1960, época do pré-golpe,  referíamo-nos à elite brasileira como retrógrada e reacionária, afora outros cognomes pejorativos apropriados à liberação de nossa jovem insatisfação e revolta com  o cerco que seus esclerosados barões promoveram para impedir as reformas postuladas pelo presidente João Goulart.

No processo de persuasão  popular que levou matronas da alta sociedade em passeata pelas alamedas dos Jardins paulistanos, quando muito em seus carrões rabos-de-peixe pela Avenida Paulista, a elite lambeu os beiços ao manipular a classe média-média (e também a média-baixa),  arrebanhando milhões de adeptos a ‘sua’ causa nos mais remotos recantos do país.

De repente, os que pichamos muros em Palmeira dos Índios, na madrugada de 12 para 13 de março de 1964, concitando a população a solidarizar-se com o ‘novo tempo’ das ‘Reformas de Base’, encaminhadas ao Congresso pelo governo federal, assistimos atônitos e sem rumo à ferocidade de outrora cândidas senhoras e seus maridos boas-praças nas marchas ‘com Deus, pela democracia’. Oportuno salientar que as proposituras reformistas eram apenas um freio conjuntural de arrumação, nada ‘revolucionário’. Conquanto nacionalista, o presidente Goulart integrava uma estrutura dita burguesa de latifúndio nos Pampas, do Rio Grande ao Uruguai.

No agreste alagoano, funcionários do Banco do Brasil  e servidores públicos de nossas relações, envolvidos em apaixonados debates socioeconômicos, nos limites da percepção provinciana de que dispúnhamos, face aos exíguos canais de comunicação eletrônica e veículos impressos, experimentávamos verdadeiros orgasmos ideológicos quando nos chegavam, embora com  atraso, jornais de linha editorial ‘progressista’, como ‘Correio da Manhã’(que mudou de lado na hora ‘H’) e ‘Última Hora’, empastelado por apopléticos ‘rebeldes de primeiro de abril’.

Jango, um pacifista, sem o perfil caudilhesco de eminentes gaúchos da História, tanto remota quanto contemporânea,  rejeitou qualquer ação emergencial de resistência,  por contrário ao previsível   sacrifício de compatriotas. A decisão do presidente não teria sido pertinente para o cunhado e correligionário, deputado  federal do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, líder do governo deposto, que tencionava resistir. Ex-governador do Rio Grande do Sul, Brizola garantira em 1961, pela ‘Cadeia da Legalidade’, a posse de Goulart na presidência, após a tumultuada renúncia de Jânio Quadros, impedindo tentativa golpista, depois consumada em 1964.

Entremeando cânticos sacros, Hino Nacional e dobrados militares, transmitidos pelas rádios à  exaustão, em apoio aos ‘salvadores da pátria’ que (falaciosamente) livraram o Brasil de uma ‘república comuno-sindicalista financiada por Moscou, Pequim e Havana’,  a elite não deu trégua aos supostos subversivos, isto é, nós, do outro lado, que sonhávamos com os explorados  joões-da-silva livres em nova ordem de bem-estar social.
Afinal, defendíamos um governo eleito pelo voto popular, pois, à luz da Constituição de 1945,o ‘vice’(caso de Goulart) fora escolhido independentemente do titular que renunciou.   Todavia,  o que adveio foi perseguição, cadeia e porrada em nosso lombo, além de cova rasa para eventuais inconformados com o golpe e dispostos ao confronto armado.

Livre da ‘ameaça de cubanização’(era esse o termo corrente, que fazia piedosas filhas-de-maria se diluirem em frêmitos de incontinência urinária, isto é, traduzindo para o ‘lulês’ dos pobres, empaparem de mijo suas indefectíveis ‘roupas de baixo’, tal o pavor histérico provocado pelos ‘comunistas ateus e antropofágicos’, comedores de criancinhas indefesas, como reverberava a ‘direitona’,  dos púlpitos eclesiais aos convescotes em suas associações corporativas,  de  milicos ou paisanos.

 Naquele tempo,  sacerdotes pedófilos e/ou defloradores de virgens(mais ou menos) convictas nas sacristias ou alcovas bentas de casas paroquiais, nem pensar! Isto é, concretamente já existiam, todo mundo sabia. Mas, se alguém ousasse denunciar, correria o risco da excomunhão, passaporte compulsório outorgado ao ‘caluniador’ no rumo do fogo do inferno, que nem Dante Alighieri ousaria descrever.

A elite se fartou sob os favores dos generais de plantão, tudo em nome de uma civilização ocidental, cristã, verde-amarela e fiel ao ‘Big Brother’ do hemisfério norte.  A cor púrpura passou a identificar os  perigosos ’comunas’, serviçais do ‘coisa ruim’.  Concomitantemente, homéricas falcatruas eram promovidas com o dinheiro público, maquiando-se operações bancárias autorizadas  através de bilhetes em papel de embrulho pelos chefões, embora, na propaganda,  além da subversão, ‘eles’ estavam atentos a qualquer indício de corrupção. “Pra frente, Brasil! Ame-e ou deixe-o!”

Pois meteram a mão na cumbuca e rasparam o fundo do tacho. Em Alagoas,  cujos governantes, historicamente, sempre andaram de pires na mão,  o Produban, banco estadual de fomento à produção local(majoritariamente açucareira), liberou centenas de milhões com hipotecas juridicamente inexequíveis.  Na prática, os ‘promitentes devedores’(é este o título pomposo dos tomadores de empréstimos bancários) ofereceram, como garantia do financiamento,  o mais profundo subsolo de sua propriedade rural. Como não há incidência de jazidas petrolíferas  no ‘pós’ ou ‘pré’-sal alagoano, deram uma  ‘volta’ descomunal nas obrigações celebradas. O Produban foi à lona e, depois de anos de luta inglória para viabilizá-lo(militei adoidado nesse esforço em vão), foi solenemente ‘deletado’ pelo governo privatista de FHC.

Agora, retomada a autoestima brasileira, pelas políticas de inclusão social do governo Lula, em que, ‘como nunca, na história deste país’, os mais ricos ganharam tanto e os mais pobres subiram o elevador, na direção da classe ‘C’, a elite joga pesado, na tentativa de desqualificar os eleitores(principalmente do norte/nordeste) que elegeram Dilma Rousseff primeira mulher presidente da República.

Na realidade, a elite, ‘decrépita e reacionária’, como a intitulávamos mais de meio século atrás,  já se esfarela, a começar pela fragilidade de seus bastiões político-partidários, haja vista o dilema tucano em  assumir,  sem mínima competência para tal,  o papel de ‘oposição’ que lhe cabe, como perdedor em três consecutivos processos eleitorais.
A deletéria elite brasileira,   embora metida a esperta e conceitualmente mal-intencionada, é burra para entender que não dispõe de exclusividade, como pensa,  sobre o bolo da riqueza do mundo. Séculos afora, os fatos comprovam que o caminho indutor da interação pacífica no planeta leva-nos, necessariamente, à perene repactuação dos contratos sociais.

 Luís XVI, para quem o Estado(francês) era unicamente ele, acabou sem a cabeça coroada, por obra da afiadíssima engenhoca do doutor Guilhotin.


(*) Originalmente publicado na 'Tribuna do Sertão'-Palmeira dos Índios(AL), em 14.11.2010.

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