quarta-feira, 23 de outubro de 2013



O que ganhamos com a aprovação do Marco Civil da Internet?                                                    

O debate sobre a nacionalização de datacenters pode tirar o foco de questões mais importantes, como a neutralidade da rede. 
                                                              Carta Capital
Pedro Augusto // Pedro Mizukami (*)                

O projeto de lei 2126/11, conhecido como Marco Civil da Internet, teve votação adiada por sucessivas vezes na Câmara, Casa em que tramita há dois anos. Em razão das recentes denúncias de espionagem pela NSA (National Security Agency), dos EUA, a proposta foi colocada em regime de urgência. Se até dia 27 não for votada, fica trancada a pauta de deliberações da Câmara.
Quando da votação em plenário, os parlamentares terão a oportunidade de apresentar novas emendas ao texto, que se somarão às 34 já propostas. Discussões tidas como superadas ressurgirão. E, pela primeira vez, serão apresentados na forma de texto legal os acréscimos elaborados pelo governo brasileiro em resposta – ao menos conforme a narrativa oficial – aos vazamentos feitos por Edward Snowden.
Como medida de asserção da soberania do País e proteção da privacidade, o governo propõe que empresas de internet como Google e Facebook (no texto “provedores de aplicações de internet”), mantenham registros e dados de pessoas que estejam no Brasil em datacenters presentes no território nacional. É difícil sustentar a pertinência da medida, que parece inadequada ao fim proposto. É mais provável que o intuito real seja contornar as dificuldades que autoridades brasileiras enfrentam, no curso de investigações criminais, ao solicitar dados a essas empresas. Se o problema fosse soberania tecnológica e privacidade, investimentos em infraestrutura e revisão da política industrial, medidas de médio e longo prazo, seriam as mais eficazes.
A discussão em torno da nacionalização de datacenters é de extrema relevância. Mas pode servir como cortina de fumaça para os lobbies, controvérsias, pressões e disputas em torno de pontos relevantes do texto. Em termos políticos, essa medida pode ainda ter como consequência a retirada do apoio das empresas de internet ao projeto.
O texto do Marco Civil se sustenta em um equilíbrio delicado de interesses. E alterações deste porte podem servir para pressionar pela mudança dois dos principais pontos do texto: a “neutralidade de rede” e o regime de responsabilidade dos provedores de aplicações de internet por conteúdo gerado por terceiros. Esses dois temas possuem grande impacto sobre o uso corriqueiro que os internautas fazem da rede. Vejamos:
1) A  preservação da neutralidade de rede proíbe que os provedores de conexão (acesso à internet) — Vivo, NET, GVT etc. — privilegiem o tráfego de determinados tipos de serviço, degradando a velocidade e qualidade de outros. Trata-se de medida que tem por fim assegurar a igualdade entre os conteúdos que o usuário busca acessar, impedindo que os detentores da infraestrutura facilitem o acesso aos seus próprios conteúdos ou aos de grupos econômicos parceiros. Como resultado, espera-se criar um ambiente mais favorável à liberdade de expressão e à concorrência, evitando descaracterizar tanto a experiência do usuário final, quanto o processo de inovação “nas pontas” que a arquitetura da internet viabiliza. As teles foram, por motivos óbvios, grandes opositoras da proposta, travando a tramitação do Marco Civil;
2) O debate em torno do regime de responsabilidade de provedores de aplicações está, assim como a neutralidade de rede, amplamente ligado à garantia da liberdade de expressão e de um ambiente capaz de estimular a inovação na internet brasileira. Trata-se de discussão que busca definir se (e como) devem ser responsabilizados provedores de serviços como YouTube, Twitter e Facebook por conteúdos gerados pelos seus usuários, garantindo-lhes segurança jurídica para operar e criando um ambiente que não estimule a remoção de conteúdos que não sejam ilegais (como os que ofendem direitos, honra, direito autoral e de imagem, de terceiros. Pela proposta, o provedor de serviços somente poderia ser responsabilizado por um conteúdo caso desrespeite ordem judicial que demande sua retirada.
A proposta não agradou à indústria de conteúdo. O debate foi provisoriamente superado após a intervenção de um gigante da radiodifusão no Brasil, demandando a transferência da discussão, no tocante a direitos autorais, para o processo de reforma da legislação autoral. Com isso, abriu-se espaço para a criação de um mecanismo específico para a remoção de conteúdos (músicas, videos, textos) que violem os direitos autorais. A indústria de conteúdo evitou, a partir de então, colocar obstáculos à tramitação do projeto, que ao mesmo tempo manteve o apoio dos provedores de aplicações.
É muito difícil prever o que vai acontecer na Câmara nos próximos dias, assim como na futura passagem do projeto pelo Senado. O contexto mudou bastante nos últimos dias, mas ainda há um legado de controvérsias e arranjos políticos anteriores que e faz presente e se reconfigura diariamente.
Há quem se pergunte se valeria a pena aprovar um texto que diferisse daquele enviado à Câmara. É preciso considerar, entretanto, que há mais no Marco Civil do que os pontos controversos. Basta olhar para os valores de pluralidade, diversidade, abertura, colaboração, defesa dos direitos humanos e exercício da cidadania em meios digitais, que o Marco Civil expressamente coloca como essenciais. Esse rol de princípios encontra-se em consonância com as discussões sobre o tema no âmbito internacional e, caso aprovado, poderá servir como importante guia para decisões judiciais relacionadas à Internet e para a elaboração de legislação futura sobre a matéria.
Merece ser observado, ainda, o rico percurso que resultou no Marco Civil, desde a militância da sociedade civil contra o PL 84/99 — o projeto de cibercrimes que acabou sendo associado ao então senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) —, passando pelo debate colaborativo que elencou os princípios que deveriam nortear a regulação da internet, a discussão de uma versão preliminar do projeto, até chegarmos aos embates travados na Câmara. De 2009 para cá, houve um movimento evolutivo de conquistas, em um experimento de democracia digital que teve altos e baixos, reviravoltas, mas que acrescentou maturidade a todos os envolvidos na participação do processo de elaboração de leis. A chegada do Marco Civil ao Congresso serve ainda para demonstrar o descompasso que existe entre a democracia digital, potencialmente mais transparente e aberta à participação constante, e a democracia tradicional, concentrada na via congressual e representativa. É preciso buscar uma harmonização entre a democracia digital e a tradicional no âmbito da reforma política, em consonância com o desejo de maior participação emanado das mobilizações populares que eclodiram no Brasil desde junho. Um projeto de lei de ampla discussão como o Marco Civil não deveria ficar travado no Congresso, sob pena desacreditar a via da democracia digital, com o risco de incentivar a apatia política, sobretudo entre os mais jovens.
Para além das questões de mérito que justificam a aprovação do Marco Civil, o processo de elaboração do projeto já é importante o suficiente para trazer à tona relevantes reflexões de cunho político. Primeiramente, o projeto representou uma iniciativa que deu aos cidadãos a possibilidade de discutir, de maneira direta, quais caminhos a legislação deveria trilhar. Em segundo lugar, cabe a pergunta: qual seria o significado de uma possível deturpação ou derrota de um projeto de lei debatido desta forma com a população? Deve existir algum limite de atuação aos representantes eleitos diante de uma proposta de lei elaborada com participação direta da sociedade?
Essas questões são apenas um indicativo dos desafios que o Brasil precisa enfrentar para aperfeiçoar suas instituições e sua democracia. A votação do Marco Civil, neste sentido, revelará se lobbies privados serão capazes de alterar proposta construída em debate público. Em tempos de manifestações populares e por um modelo de Estado que efetivamente reflita os desejos da população, toda a atenção deve ser dada aos rumos deste projeto.
(*) Pedro Augusto e Pedro Mizukami são pesquisadores do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro (CTS/FGV).
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