sábado, 22 de junho de 2013

Mensagens das ruas: 

quem, quais, como?   

Aos democratas cabem tarefas urgentes de resgate da democracia por meio da ampliação radical da transparência, da participação popular (“ouvir a ruas”) e do controle social, tendo em vista a elaboração e implementação de políticas públicas transformadoras.

A onda de manifestações que tem varrido as grandes cidades do país e provocado perplexidades – em sentidos diversos – concita-nos a compreender seu significado, notadamente: o que tem de novo nesses movimentos (no plural)?; quem são os manifestantes?; quais mensagens estão sendo emitidas aos políticos e gestores públicos e, consequentemente a nós, analistas?; de que forma (como) essas mensagens estão sendo emitidas?

Em razão da avalanche de análises, todas – o que inclui necessariamente esta – precárias em razão do aparente ineditismo (forma e conteúdo) das manifestações, do fato de estarem ocorrendo somente há duas semanas e do espanto que tem provocado, este artigo pretende levantar algumas hipóteses que contribuam para responder: quem são os manifestantes, quais mensagens estão nos enviando e como tais manifestações e mensagens são veiculadas. Com isso, pretendo fazer um recorte no fenômeno em tela.

Em relação a “quem são” os manifestantes, aparentemente é possível caracterizá-los em três setores, com proporções distintas: 1) o referente ao Passe Livre, movimento que existe há pelo menos uma década, tem raízes sociais e congrega um conjunto expressivo de simpatizantes que veem nele a representação de suas demandas, notadamente sintetizadas pelo direito ao transporte como um direito universal; 2) o relativo a um conjunto de pessoas (indivíduos) e pequenos grupos afins que manifestam demandas bastante heterogêneas e difusas: corrupção, qualidade dos serviços públicos, crítica às instituições políticas, comparação dos gastos com a Copa do Mundo com a realidade social. Esses dois grandes grupos devem congregar cerca de 95% dos manifestantes; e c) os referentes a militantes políticos de grupos revolucionários, partidários e não partidários – cujo modus operandi remonta ao século XIX –, que objetivam estressar as instituições políticas “burguesas” com o objetivo de instilar uma possível revolução socialista e/ou anarquista. São esses, possivelmente, parte dos responsáveis pela violência, pela via da depredação, saques etc. Diferentemente do que o senso comum, o pensamento conservador e a grande mídia dizem, não são “vândalos” – conceito vago e fugidio, mas interpretado como indivíduos ou grupos que querem “fazer baderna” por qualquer motivo “fútil” –, uma vez que a violência é prática revolucionária legítima, como bem o demonstra a história europeia no século XIX. De toda forma, sua legitimidade é próxima a zero mediante uma sociedade – por meio dos manifestantes – que está lutando por “reformas”, mesmo que de forma não tradicional, e não por “revolução”. Note-se que nesses possíveis 5%, há também grupos de extrema direita – como aparentemente demonstrado na depredação da prefeitura de São Paulo e nos estabelecimentos comerciais do centro paulistano –, cujo objetivo é desgastar ao limite o governo petista em particular e os manifestantes em geral, na perspectiva de que haja endurecimento da polícia e, no limite, de leis e procedimentos do Estado. A lógica da “rota na rua” e, para os mais desvairados, uma ditadura militar, parece ser o “sonho” destes grupos. São claramente oportunistas, que estão aproveitando das manifestações realmente pacíficas para instilar a anomia. É possível, embora necessite ser comprovado, que os dois extremos ideológicos possam se encontrar nesses atos, mas é plausível que apenas um deles seja ativo: ao menos de forma mais expressiva, a extrema direita.

Por mais que possa haver subgrupos dentro de cada grupo, aparentemente – é sempre bom ressalvar que se trata de uma análise realizada no calor dos acontecimentos – não se distanciam dessas caracterizações. Como aludido, a conjuntura da Copa do Mundo, isto é, seu prenúncio por meio da Copa das Confederações, tendo em vista o montante, comparável, dos gastos, ao lado do aumento – previsto, diga-se – das passagens dos transportes coletivos, foi a “janela de oportunidade” para que o Movimento pelo Passe Livre pudesse catalisar, imprevistamente, essas enormes manifestações.

Do ponto de vista sócio/econômico, aparentemente trata-se de uma combinação entre setores populares e classes médias, incluindo as ascendentes.

Quais mensagens os movimentos – não é possível jamais utilizar o singular – estão nos enviando, sobretudo aos responsáveis pela tomada de decisão política? Aparentemente são várias e igualmente difusas. Tentarei listar as que considero as mais importantes:

• A derrocada do sistema político brasileiro: multipartidarismo pouco representativo; império da “governabilidade”, cujas coligações e coalizões contraditórias não apenas impedem políticas públicas coerentes, como impedem reformas sociais profundas – cujos efeitos é o que estamos observando; privatização da vida política, cuja marca é o financiamento de campanhas políticas por interessados na gestão pública: indústria imobiliária, concessionárias de ônibus e de inúmeros serviços públicos etc. Analisei essas características do sistema político brasileiro no artigo, publicado neste Portal, intitulado “Travas do sistema político às políticas públicas” (25/02/2013).Tal derrocada é relativa e somente poderá ser verificada ao longo do tempo e também nas próximas eleições. Obviamente a reforma do sistema político institucional é ainda mais importante, uma vez que o afastamento entre a sociedade (a “rua”) e as instituições políticas (sistemas partidário e eleitoral) leva normalmente a ditaduras de direita.

• O “mal estar social” brasileiro, que permanece mesmo com os inegáveis avanços sociais conquistados na última década. Sobretudo as grandes cidades, antes metrópoles, depois megalópoles, agora macrometrópoles, sintetizam toda forma de mazelas: mesmo que com exceções, a educação ainda é precária; a saúde ainda é pouco efetiva (o exemplo das filas de espera é notável); e o transporte coletivo não prioritário aos governos, caro, lento e de baixa qualidade. Neste caso, o cálculo dos milhões de cidadãos, notadamente os pobres, quanto ao tempo de ida ao trabalho e volta à residência é incrivelmente grande, contribuindo para a propagação de doenças e a diminuição da produtividade do trabalhador, entre tantas outras consequências. Há inúmeras outras mazelas que são catalisadas pelo Movimento Passe Livre (MPL), e que denotam como as grandes cidades não são nem podem – dada esta lógica – ser apropriadas pelos cidadãos e sim pelo Capital e pelas classes médias superiores. Tal “mal estar” aparentemente guarda alguma semelhança com o que houve em 1968, em que os filhos do baby boom se rebelaram vigorosamente, embora suas vidas tivessem melhorado com a criação do Welfare State. 

• A necessidade do avanço e institucionalização do trinômio transparência, participação popular e controle social. O Brasil é um país em que o Estado, as entidades privadas e as não governamentais carecem, em larga medida – sempre com exceções – de publicização. Ao lado disso, a participação popular é confinada às instituições tradicionais em crise (partidos, sindicados, movimentos sociais corporativos e não governamentais tópicos), aos conselhos gestores (em larga medida cooptados pelo poder público vigente), a audiências públicas (que são apenas consultivas) e outras poucas formas. Há um manancial de possibilidades participativas, e demandas reprimidas, como escancara os atuais movimentos. Quanto ao controle social, trata-se de conceito absolutamente pouco efetivo e que pode avançar por inúmeras formas. 

• A necessidade de os tomadores de decisão se compromissarem com a inversão de prioridades: do automóvel individual ao transporte coletivo; das cidades do e para o Capital + classes médias para a cidade do e para os cidadãos, notadamente os pobres, por meio do investimento maciço nas políticas públicas voltadas a eles e pelo uso e ocupação do solo. Embora não dependa apenas dos prefeitos, estes podem pressionar os níveis superiores, uma vez que são eles que primeiro devem responder aos cidadãos e, mais ainda, priorizarem equipamentos sociais e políticas públicas inovadoras em prol dos pobres. Idem quanto ao financiamento público, pois largamente apropriado pelas elites, o que implica sua utilização em larga medida para os que mais precisam: micro e pequenos empreendedores, cooperativas populares, empresas com compromisso de investimento e empregos nacionais; entre inúmeros outros exemplos (neste caso, em nível nacional).

• A obsolescência da polícia como agente de repressão, notadamente aos pobres. Em outras palavras, há também uma mensagem – após a repressão desmesurada e generalizada na semana passada – de que à polícia cabe garantir os direitos democráticos, e não proteger prioritariamente o patrimônio, especialmente o privado. Mais ainda, tudo indica que a polícia, em certas circunstâncias, age de forma “política”, isto é, obedece a comandos políticos, e por vezes partidários, contrariamente ao seu papel como agente do Estado. Nas manifestações do dia 18/06 aparentemente a polícia deixou a depredação da prefeitura ocorrer tendo em vista esta ser “do PT”: trata-se de uma interpretação possível. Antes disso, contudo, na semana passada, o fato de a própria violência e provocação ter partido de policiais é altamente revelador de que a sociedade brasileira precisa se “apropriar” dos aparatos policiais.


• A saturação da grande mídia e a incrível timidez dos governos petistas em enfrentá-la. O oportunismo dos meios de comunicação em “mudar de posição” na tentativa de envolucrar os movimentos sociais, colocando-se “ao lado deles”, denota uma vez mais seu caráter de Partido da Imprensa Golpista. Toda a programação vinculada ao entretenimento de baixa qualidade e descompromisso com a cidadania, e, agora, a cobertura das manifestações cuja referência é o “vandalismo”, em oposição aos “ordeiros”, torna os meios de comunicação atores centrais na crise de representação, que necessitam, portanto e urgentemente, ser reformados à luz do que vem ocorrendo na Argentina e outros países e, anteriormente, o que ocorreu na França no pós-guerra.

Tudo isso transparece, por formas diversas, e deve ser analisado em profundidade. 

Por fim, “como” tudo isso é mobilizado e emitido pelos movimentos sociais? Ao que tudo indica, pelo boca-a-boca, pelos “torpedos” dos celulares, pelas redes sociais e sobretudo pelo incrível sentimento e percepção de que não é mais possível aguentar a vida que se leva. Nesse sentido, “bastou” um movimento não partidário, com causa “universal” (não corporativa), sem lideranças claras e não verticalizado, para catalisar – enfatize-se – esse conjunto difuso e heterogêneo de insatisfações.

É claro que ninguém esperava uma tal repercussão, nem o próprio MPL, mas esse próprio espanto é sinal claro de que o sistema político tradicional está em crise, e que a mídia – que tenta permanente e ilegitimamente ocupar o espaço da representação política – igualmente está em crise e precisa ser reformada radicalmente. 

A incapacidade do sistema político em auscultar a pulsão da sociedade profunda, sobretudo num sistema político cuja moldura permite aventureiros de toda sorte, é grave, notadamente para partidos reformistas, como o PT. Seu distanciamento com o que foi em  seus primórdios é igualmente sinal – que talvez ainda possa ser recuperado – de que seu ciclo histórico pode estar se encerrando. Resta saber se isso se confirmará, e, se sim, o que e quem o sucederá! Afinal, a roda da história não para de girar e o tempo histórico tanto pode ser muito longo como muito curto. 

Aos democratas cabem tarefas urgentes de resgate da democracia por meio da ampliação radical da transparência, da participação popular (“ouvir a ruas”) e do controle social, tendo em vista a elaboração e implementação de políticas públicas transformadoras. 

A hora é esta!

F(*) ancisco Fonseca, cientista político e historiador, é professor de ciência política no curso de Administração Pública e Governo na FGV/SP. É autor de “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil” (São Paulo, Editora Hucitec, 2005) e organizador, em coautoria, do livro “Controle Social da Administração Pública – cenário, avanços e dilemas no Brasil” (São Paulo, Editora Unesp, 2010), entre outros livros e artigos.

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